Jogo de Palavras

"No principio era o logos..."

domingo, dezembro 25, 2005

Fé e razão (da Enciclica Fides et Ratio de João Paulo II)



Introdução
A Fé e a razão são como que duas asas pelas quais o espírito humano se eleva à contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer e Ele, para que conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio.
Quanto mais o homem conhece a realidade e o mundo, tanto mais se conhece a si próprio na sua unicidade. O que chega a ser objecto do nosso conhecimento passa a serparte da nossa vida. A afirmação inscrita no templo de Delfos “Conhece-te a ti mesmo”deve ser assumida como regra base de todo o homem que deseje distinguir-se no meio da criação inteira, enquanto “conhecedor de si mesmo”.
Ao longo dos tempos a existência humana é marcada por questões: Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? Que é que haverá para além deta vida? A Igreja não é alheia a este tipo de pesquisa. Desde que recebeu, no Mistério Pascal, o dom da verdade última sobre a vida do homem, fez-se peregrina pelas estradas do mundo para anunciar que Cristo é o “Caminho, verdade e vida”. Esta missão torna a comunidade crente participante do esforço da humanidade em alcançar a verdade, em que cada verdade atingida é apenas mais uma etapa rumo à verdade plena que se há-de manifestar na última revelação de Deus.
São vários os caminhos do homem para avançar no conhecimento da verdade, o que torna cada vez mais humana a sua existência e em que a filosofia dá um contributo específico ao levantar a questão do sentido da vida. A Filosofia Moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação no conhecimento humano. Em vez de se apoiar na capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos. (Daqui resulta o agnosticismo e relativismo, que levaram a investigação filosófica q perder-se nas areias movediças dum cepticismo geral.
Sendo a Igreja depositária da revelação de Jesus Cristo, deve reafirmar a necesidade da reflexão sobre a verdade. Ao reafirmar a verdade da fé, pode-se restituir ao homem de hoje uma genuína confiança nas suas capacidades cognoscitivas e oferecer à filosofia uma estímulo para poder recuperar e promover a sua plena dignidade. A filosofia tem a grande responsabilidade de formar o pensamento e a cultura através do apelo à busca da verdade.
Capítulo I
A Igreja é a depositária de uma mensagem do próprio Deus, dái o conhecimento que ela propõe ao homem, não provém de uma reflexão sua, mas de ter acolhido na fé a palavra de Deus. Deus fonte de amor, dá-Se a conhecer. No Concilio Vaticano I, foi sublinhado o carácter sobrenatural da revelação de Deus, além do conhecimento da razão humana, por sua natureza capaz de chegar ao Criador, existe um conhecimento que é próprio da fé e que exprime uma verdade que se funda no facto de Deus Se revelar. A verdade alcançada pela via da razão e a verdade da Revelação, não se confundem. A fé por ser de caráctrer sobrenatural pertence a uma ordem diferente de conhecimento da do conhecimento filosófico. A filosofia e as ciências situam-se na ordem da razão natural, enquanto que a fé, iluminada pelo Espírito reconhece na mensagem da salvação a “plenitude de graça e de verdade” que Deus quis revelar na história e de forma definitiva por meio de seu Filho Jesus Cristo. Assim a revelação de Deus entrou no tempo e na história. A verdade que Deus confiou ao homem a respeito de Si mesmo e da sua vida insere-se no tempo e na história. A Dei Verbum ensina que a Igreja tende para a plenitude da verdade divina, até que nela se cumpram as palavras de Deus. Na história pode-se constatar a acção de Deus a favor da humanidade.
Jesus revela o Pai, mas o conhecimento que possuímos é limitado pois a nossa compreensão é limitada. Só a fé permite entrar no mistério, proporcionando a compreensão coerente do mesmo. A fé é uma resposta de obediência a Deus. Deus dá-se a conhecer, mas também trás consigo a credibilidade dos conteúdos que revela. Pela fé o homem reconhece a verdade plena e integral de tudo o que foi revelado pirque é o próprio Deus que o garante. A fé permite a cada um exprimir, do modo melhor, a sua própria liberdade. O Conhecimento da fé não anula o mistério, apenas o torna mais evidente e apresenta-o como facto essencial para o homem.
De acordo com o Concílio Vaticano II a revelação coloca dentro da história um ponto de referência de que o homem não pode prescindir se quiser compreender o mistério das sua existência. A razão investiga e compreende e é limitada apenas pela sua finitude perante o mistério infinito de Deus. A revelação introduz na história uma verdade universal que leva a mente do homem a ampliar os horizontes do próprio conhecimento até sentir que realizou tudo o que estava ao seu alcance. A revelação cristã é a verdadeira estrela de orientação para o homem. O fim último da existência humana é objecto de estudo quer da filosofia quer da teologia.
Capítulo II
A ligação entre o conhecimento da fé e da razão vem indicada na Sagrada Escritura. O autor sagrado ao descrever o home sábio, apresenta-o como aquele que ama e busca a verdade. Graças à inteligência, crentes e não crentes, têm a possibilidade de saciarem-se nas aguas profundas do conhecimento. No texto bíblico existe uma unidade profunda entre o conhecimento da razão e da fé. O que acontece no mundo são realidades analisadas, observadas e julgadas com os meios próprios da razão, mas sem deixar a fé à margem deste processo. A fé não vem tirar a autonomia da razão, apenas vem fazer compreender ao homem que em tais acontecimentos, se torna visível e age o Deus de Israel. A fé aperfeiçoa o olhar interior, abrindo a mente para descobrir, no curso dos acontecimentos a presença operante da Providência. O home pela luz da razão, pode reconhecer a sua estrada; mas percorrê-la de forma decidida, sem obstáculos e até ao fim, só o consegue se integrar a sua pesquisa no horizonte da fé. Por isso a razão e a fé não podem estar separadas, sem correr o risco de o homem perder a possibilidade de conhecer de modo adequado a si próprio, ao mundo e a Deus. Fé e razão implicam-se uma na outra, cada qual com o seu espaço próprio de realização. O povo eleito de Israel compreendeu que a razão deve respeitar algumas regras para manifestar do melhor modo a própria natureza: primeira o conhecimento do humem é um caminho que não permite descanso; segunda nasce da consciência de que não se pode percorrer tal caminho com o orgulho de quem pensa em tudo é fruto de conquista pessoal; terceira fundamenta-se no “temor de Deus”. “Pela natureza e beleza das criaturas, pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor” (Sab 13, 5). O que a razão atinge pode ser verdade, mas só adquire pleno significado se o seu conteúdo for situado num horizonte mais amplo o da fé. A fé segundo o Antigo Testamento liberta a razão. Pela razão o homem atinge a verdade, porque, iluminado pela fé, descobre o sentido profundo de tudo. Este conhecimento entra em relação com a fé e a revelação. S. Paulo diz que através da criação, os olhos da mente podem chegar ao conhecimento de Deus. Através das criaturas, Ele faz que a razão intua o seu poder e a sua divindade. Segundo S. Paulo, no projecto originário da criação estava prevista a capacidade de a razão ultrapassar comodamente o dado sensível para chegar à própria origem de tudo: o Criador. Com a desobediência, perdeu a facilidade de acesso a Deus criador. A vinda de Cristo veio redimir a razão da sua fraqueza. A razão não pode esgotar o mistério de amor que a Cruz representa, mas a Cruz pode dar à razão a resposta última que esta procura.
Capítulo III
Todos os homens desejam saber e o objecto próprio deste desejo é a verdade. Os filosófos procuraram descobrir tal verdade, mas para além das escolas de pensamento, também existem outras expressões com que o homem pode formular a sua “filosofia”: tradições familiares e culturais, experiências pessoais, convicções...Cada uma destas manifestações tem sempre o desejo de alcançar a certeza da verdade e do seu valor absoluto.
O homem é definido como aquele que procura a verdade. Há verdades que assentam em evidências imediatas ou recebem confirmação da experiência; as verdades de carácter filosófico alcançada através da especulação; as verdades religiosas que de algum modo têm as suas raízes na filosofia. O homem ser que busca a verdade, é também aquele que vive de crenças.
Capítulo IV
Os pais da filosofia tiveram por missão mostrar a ligação entre a razão e a religião procurando dar fundamento racional à sua crença na divindade. A religião foi puruficada pela análise racional. Clemente de Alexandria chamava ao Evangelho “ a verdadeira filosofia”. Os Padres da Igreja mostraram o modo como a razão se podeia abrir á transcendência. Segundo Santo Anselmo, a prioridade da razão não faz concorrência à investigação própria da razão. A sua tarefa é saber encontrar um sentido. O intelecto deve pôr-se à procura daquilo que ama: quanto mais ama, masi deseja conhecer.
A fé requer que o seu objecto seja compreendido com a ajuda da razão; por sua vez a razão, admite como necessário aquilo que a fé apresenta. A luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus por isso não se podem contradizer entre si (S. Tomás). A fé não teme a razão, mas confia nela; a fé supõe e aperfeiçoa a razão. A razão iluminada pela fé fica liberta das limitações e fraquezas causadas pela desobediência do pecado.
Com Santo Alberto Magno e S. Tomás, dá-se uma nefasta separação da fé e razão o que provoca uma desconfiança cda vez mais forte a respeito da própria razão. Boa parte da filosofia moderna desenvolveu-se num afastamento da revelação cristã. O idealismo procurou transformar a fé e os seus conteúdos em estruturas dialécticas racionalmente compreensíveis. O posotivismo veio afastar a visão cristã do mundo e deixou cair qualquer alusão à visão metafísica e moral. Os seguidores do Nihilismo defendem a pesquisa como fim em si mesma.
Ao desasombro da fé deve corresponder a audácia da razão.
Capítulo V
Mesmo a fé estando acima da razão, não pode existir uma verdadeira divergência entre fé e razão porque o mesmo Deus que revela os mistérios e comunica a fé, foi quem colocou no espírito humano a luz da razão. E Deus não poderá negar-Se a Si mesmo, pondo a verdade em contradição com a verdade. A fé incita a razão a sair de todo o isolamento e a abraçar de bom grado qualquer risco por tudo o que é belo, bom e verdadeiro.
Capítulo VI
A Teologia, enquanto elaboração reflexiva e científica da compreensão da palavra divina à luz da fé, não pode deixar de recorrer às filosofias que vão surgindo ao longo da história. A Teologia está organizada, enquanto ciência da fé, à luz dum duplo princípio metodológico: auditus fidei e intellectus fidei em que recolhe os conteúdos da revelação tal qual na Sagrada Escritura, na Tradição e noMagistério vivo da Igreja; e responde às exigências próprias do pensamento, através da reflexão especulativa. A filosofia presta ajuda á Telogia na compreensão da Tradição, do Magistério e doa mestres da Teologia.
A Teologia Dogmática deve ser capaz de articular o sentido universal no mistério de Deus e da economia da salvação, quer do modo narrativo quer de forma argumentativa. Sem a filosofia seria impossível formular certos conteúdos teológicos como a linguagem sobre Deus, a acção criadora de Deus, a relação entre homem e Deus...
A Teologia Fundamental tem por função dar razão da fé, deve procurar justificar e explicitar a relação entre a fé e a reflexão filosófica. Deve manifestar a compatibilidade intrínseca entre a fé e a sua existência essencial de se explicitar através de uma razão capaz de dar o seu consentimento. Assim, a fé saberá mostrar o caminho a uma razão na busca sincera da verdade.
A Teologia Moral necessita ainda mais da filosofia. A vida no Espírito conduz os crentes a uma liberdade e responsabilidade que ultrapassa a própria Lei. Porém o Evangelho e os escritos apostólicos propoem princípios de conduta cristã, ensinamentos e preceitos específicos; para aplicar nas circunstâncias concretas da vida individual e social, o cristão precisa de se valer da sua consciência e da força do seu raciocínio. A Teologia Moral deve recorrer a uma visão filosófica correcta quer da natureza humana e da sociedade, quer dos princípios gerais duma decisão ética.
A razão meve-se entre dois pólos – a palavra de Deus e melhor conhecimento desta e assim evita percursos que poderiam conduzir para fora da Verdade revelada.
Distinguem-se diversos estados da filosofia em relação á fé cristã: a filosofia independente da revelação evangélica, a filosofia cristã que não pretende aludir a uma filosofia oficial da Igreja, pois a fé naõ é uma filosofia. Esta designação deseja idicar um modo de cristão de filosofar. A filosifa cristã tem dois aspectos: um subjectivo que consiste na purificação da razão por parte da fé e o aspecto objectivo que diz respeito aos conteúdos. Questões como o conceito de um Deus pessoal, livre e criador; a realidade do pecado; a concepção de pessoa como ser espiritual tem que ser tidas em conta.
A Teologia sempre teve necessidade da contribuição da filosofia. O trabalho teológico é feito pela razão crítica á luz da fé. A teologia precisa da filosofia como interlocutora para verificar a inteligibilidade e verdade universal das suas afirmações. A revelação nunca poderá humilhar a razão nas suas descobertas; a razão nunca deverá perder a sua capacidade de interrogar-se e de interrogar.
“Crer nada mais é senão pensar consentindo...a fé se não for pensada, nada é” (S. Agostinho).
Capítulo VII
Uma primeira exigência feita á filosofia é que esta constitua um estímulo para se conformar com a sua própria natureza. A filosofia é convidada a empenhar-se na busca do fundamento natural do fim último do homem.
Uma segunda exigência verifica a capacidade do homem chegar ao conhecimento da verdade. Estas duas exigências implicam uma terceira de alcance autenticamente metafísico, capaz de transcender os dados empíricos para chegar na busca da verdade, a algo de absoluto. È uma exigência própria do conhecimento do Bem moral, cujo fundamento último é o sumo Bem, o próprio Deus.
Há alguns perigos vindos da reflexão filosófica e da reflexão da tradição cristã a evitar tais como: Ecletismo é o comportamento de quem, na pesquisa, doutrina e argumentação, costuma tomar ideias isoladamente de distintas filosofias sem se preocupar com a sua coerência e contexto. Historicismo para compreender correctamente uma doutrina do passado é necessário enquadrá-la no seu contexto histórico e cultural. Porém o historicismo toma como sua tese fundamental estabelecer a verdade duma filosofia com base na sua adequação q um determinado período. Cientificismo recusa-se a admitir como válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências positivas, relegando para o âmbito da pura imaginação quer o conhecimentor religioso e teológico, quer o saber ético e estético. O Pragmatismo é uma atitude mental de quem, ao fazer as suas opções, exclui o recurso a reflexões abstractas ou a avaliações fundadas sobre princípios éticos. O Niilismo é a negação da humanidade do homem e a sua identidade.
A Teologia deve cumprir a missão que o Concílio Vaticano II confiou: renovar as suas metodologias, tendo em vista um serviço mais eficaz à evangelização. “È necessario que esta doutrina derta e imútavel, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e apresentada conforme as exigências do nosso tempo”. (João XXIII) A Teologia deve manter o olhar fixo na verdade última que lhe foi confiada pela Revelação. È um dinamismo interior da fé. O objectivo fundamental da Teologia é apresentar a compreensão da Revelação e o conteúdo da fé.
Conclusão
É importante o impacto que o pensamento filosófico tem no progresso das culturas e comportamentos sociais. Fé e razão ajudam-se mutuamente, exercendo uma em prol da outra a função de discernimento crítico e purificador mas também de estímulo para progredir na investigação e no aprofundamento. A Teologia, que recebeu o dom de uma abertura e originalidade que lhe permite existir como ciência da fé, fez com que a razão permanecesse aberta à radical novidade que a revelação de Deus traz consigo. A filosofia é como um espelho em que se reflecte a cultura dos povos. A relação próxima entre sabedoria teológica e saber filosófico é uma das riquezas mais originais da tradição cristã no aprofundamento da verdade revelada.
Como a Virgem foi chamada a oferecer toda a sua humanidade e feminilidade para que o Verbo de Deus pudesse encarnar e fazer-se um de nós, também a filosofia é chamada a dar o seu contributo racional e critíco para que a teologia seja fecunda e eficaz na compreensão da fé.
Nuno Monteiro

1 Comments:

  • At segunda-feira, dezembro 26, 2005 6:23:00 da tarde, Blogger Jorge Moreira said…

    Olá Nuno,
    Permite-me alguns comentários ao texto.

    Pessoalmente não gosto muito de utilizar a palavra “Fé”, porque além de ser muito mal compreendida pela esmagadora maioria das pessoas, é aplicada de uma forma menos correcta por parte de algumas Religiões, que se servem dela. Para mim a Intuição tem mais a ver com a verdadeira Fé, porque não é imaginação nem razão, pode é ser Fé esclarecida e não dogmática. Para mim esta é a verdadeira Fé de Cristo… “Deus está no meio de nós”…

    No Zen Budismo aplica-se muito frases para meditar que não sendo racionais, também não serão irracionais. São arracionais, pois pretende-se que a pessoa medite sobre elas e procure dentro de si a verdade para além da razão. Não é por acaso que muitos padres e teólogos utilizam esta técnica ou fazem retiros em mosteiros Zen.

    O texto defende uma única via para chegar até Ele e conhecer as perguntas mais inquietantes para a alma humana. A Igreja não é a única via. Cristo quando veio à Terra não foi para criar uma nova Religião, essa foi criada pelos seus seguidores, Ele veio dar uma nova vertente às Religiões já instauradas e ao pensamento humano, alicerçado na Ética.

    A razão é uma ferramenta mas também é uma arma. Depende como a utilizamos.
    O “Caminho do meio”, é sem dúvida o percurso que deveremos seguir. A Razão Iluminada pela Intuição. E essa só se pode “achar”, cada um, em si próprio.

     

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